quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Maria e o Velho

Eu devia ter oito anos quando ela morreu.
Lembro do cheiro do cabelo, do corpo sofrido dos maus tratos. Os olhos eram iguais aos meus. Azuis.Mas de uma dignidade imensa. Lembro também como me acordava com beijos e fazia meu café da manhã pra poder ir a escola. Aquele sanduiche maravilhoso que fazia.
Disseram que foi um acidente.
Acordei com seus gritos e meu pai fingindo socorrê-la. Um tiro na cabeça. Tinha os braços arranhados e os olhos inchados de socos.
Acho que fizeram parecer um assalto, sei lá.
Virei pro lado e adormecí novamente. Me calei durante anos. Não me vinham palavras, gestos , nem ao menos vontade de gritar pro mundo quem era o monstro que me deu vida. O monstro que me fez sentir ódio pela primeira vez. Que me fez sentir vontade de comer sua carne aos poucos, como uma criança saboreia o sorvete preferido.
Sentimentos sufocados nos anos que se seguiram como se nada que eu fizesse fosse adiantar. Uma sede de sangue me invadia a alma quando chegava o verão.
O ar quente que respirava me dilatava a alma, me enfurecia, me tirava a normalidade dos olhos, do corpo e da mente.
Lembro que entrava na Igreja e ficava rezando, pedindo pra que Deus me tirasse os pensamentos sanguinários da cabeça. Acho até que de certa forma herdei a brutalidade daquele homem frio, bêbado e calculista com quem era obrigada a dividir o nome, a casa, a comida e tinha a obrigação de chamar de pai.
Enchia a casa de prostitutas, todas com suas peculiaridades. Umas fediam mais que as outras, algumas tinham pena. Todas tendo que suportar o cheiro de covardia que emanava da casa, dele e de mim. Sempre ia dormir ouvindo música alta, sempre no sofá com alguma desvairada seminua no colo.
Estava prestes a fazer dezoito anos naquela vida mesquinha e sem futuro.
Deixei a escola, comecei a trabalhar de garçonete e perdí a virgindade na traseira de um carro velho, roído como minha vida. As coisas não iam nada bem e eu sabia disso. Pedia sangue, vingança.
Meu único companheiro era um caderno cheio de rabiscos, poemas, e confissões. Das mais perversas.Doentias até. Tudo digno de Shakespeare ou Nelson Rodrigues. Tudo oque eu queria dizer e não tinha coragem.
Uma noite cheguei em casa e ele estava no meu quarto, lendo.
Ví um leão prestes a me devorar. Veio pra cima de mim, tentando me enforcar, socando meu estômago. Dizia que iria me matar por ser tão cretina.
Pensei que teria o mesmo fim de minha mãe. Mas o instinto de sobrevivência falou mais alto. Conseguí que me soltasse e saí correndo em direção a cozinha, ouvindo a gritaria e seus passos atrás de mim. Só me restou apanhar uma faca na pia. Não sei bem como aconteceu. Foi tudo muito rápido.
Ele estava no chão sangrando, os olhos de cachorro acuado, pedindo ajuda.
Fugí. Peguei a mochila, vinte mangos e saí pra não voltar mais.
Passei fome, pedí carona, corrí o mais rápido que pude pra não ser pega.
Foi quando cheguei em uma cidade pacata, bonita até.
Morrendo de fome, pensei em tomar um café pra aliviar um pouco. Moedas e dois cigarros eram tudo oque eu tinha.
Ví um Café bonito, estilo parisiense e entrei. O senhor no balcão me atendeu formalmente, me olhou nos olhos e fez perguntas.
A princípio, não gostei. Odeio gente bisbilhoteira.
Mas ele me ofereceu pouso em troca de ajudar nos serviços do estabelecimento. Queria depois ir embora, mas fiquei.
A sede passou.
Conseguí um novo pai. Me sentí protegida, estudei, rumei a novos horizontes, promissores até.
Fui pra universidade. Arqueologia.
Conhecí o Cairo, Roma, França, Peru e tantos outros lugares magníficos.
Amei e fui amada.
Mas não tinha ainda assim a esperança de ser feliz. Por mais que tentasse não via meu futuro.
Meu pai postiço não sabe de tudo oque passei, e nunca saberá.
E agora estou de volta na cidade que me deu novos dias.
Quando cheguei, José fez festa, se mostrou feliz por me ver de volta.
É, José. Nome bonito né?
O Café era o mesmo. A modernidade não chegava ali. Um dia herdaria aquele lugar, pensei. Mas isso não fazia parte do plano.
Contou as novidades, contei as minhas e corrí no quarto dos fundos que um dia foi meu e resgatei meu velho caderno. As folhas amareladas ainda continham a letra infantil e vingativa.
E pensar que matei meu pai. Não sou melhor do que ele foi. Nem serei.
O fim está próximo. Tenho que voltar a velha ponte. O rio deve estar seco, o baque vai ser rápido.
Depois do abraço da minha mãe, aquele foi o melhor de toda a minha vida. O abraço da liberdade, de saber que não voltaria mais. José me prolongou os dias, mas parece que não adiantou muito.
E agora aqui estou.
Prestes a pular. O fim de tarde multicolor sorrí pra mim. Crianças brincam por perto.
Chegou a hora.
Minha grande hora...


*************

Toda moeda tem dois lados, inclusive meus textinhos!

O/

Lolita!


Nenhum comentário: